domingo, 19 de abril de 2009

A Viagem

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.”,
Ensaio sobre a cegueira, José Saramago


Poucos têm a coragem de enfrentar o que são. De olhar, demoradamente, para o seu âmago. Em tempos não muito longínquos, o vivo que me transporta empreendeu essa jornada. Viajou para dentro de si mesmo.

Bem… pensando melhor, não foi empreendimento seu. Antes, foi atirado pelas circunstâncias do momento. Mas descrever-vos-ei essas circunstâncias, e os acontecimentos que as criaram, noutra ocasião.

Dizia eu que, em tempos não muito longínquos, o estropício viajou para dentro de si mesmo. Lá, nas trevas, oculto, encontrou-me a mim: tenebroso; vil. Horrorizado, iniciou a sua Cruzada; a sua busca por redenção. Encetou a contenda contra mim: eterna e, porém, fútil. Uma luta desesperada. Ainda não me entregou a alma, apesar de já ser minha.

O seu espantado horror não se compreende. Eu sempre lá estive. Desde o instante em que foi arrancado do ventre de sua mãe. Arrancado, porque resistiu. Como se adivinhasse que, com ele, também eu viria ao mundo. Resistiu. Como se soubesse que eu estaria sempre lá, envenenando-lhe o sangue; corrompendo-lhe a alma.

A sua resistência deixou as marcas do cirurgião no corpo da progenitora. Evidências do seu instinto pré-natal. Evidências de mim. Mas, durante anos, escolheu não as ver. Um poltrão, asseguro-vos.

A sua percepção da minha existência deveria ter surgido numa das inúmeras oportunidades que lhe dei. E manifestei-me tantas vezes… Contudo, a sua covardia convenceu-o de que se tratavam apenas de actos causados pela ingenuidade da juventude; que eram desprovidos de maldade.

Mas quando deixou de conseguir atribuir os meus actos à sua ingenuidade… estremeceu. Olhou, e viu-me. Percebeu então que trazia dentro dele, desde o início, uma coisa: Eu. Só que, essa coisa, ao contrário de outras, tem nome.

As atrocidades que me tornaram infame são as menores que cometi. Produziram muitas mortes, de facto. Todavia menores porque, desde então, tenho sido ainda mais abjecto: tenho feito muitas vítimas, sem as matar; mas corrompendo-as, condenando-as.

Eu sou a coisa dentro dele. Sou o destino inesperado da sua viagem. Sou Vlad Drãculea.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Ego

nome masculino
1. o ser enquanto entidade consciente
2. auto-estima

(Do lat. ego, «eu»)


Recentemente deparei-me com os seguintes números, relativos à população mundial.

Estima-se que existam 6,773,355,723 humanos (à data de 14 de Abril de 2009, 23:40 GMT). Mesmo já sendo tantos, os nascimentos ocorrem a um ritmo alucinante. É incrível. Só desde que comecei a escrever este texto, nasceram mais 516. São 4,3 nascimentos em cada segundo! (fonte: U.S. Census Bureau)

Mas ainda há mais. A estimativa do número total de humanos que alguma vez nasceram está próxima dos 106 biliões. Notem bem: 106,000,000,000 (fonte: Population Reference Bureau). São, de facto, números assombrosos.

A fazer fé nestes números, sou minúsculo. Sou apenas um de entre os muitos que são ou alguma vez foram.

É curioso, mas não me sinto assim, tão pequeno (mesmo até que o seja). Em vez de pequeno, sinto-me único. Sinto-me eu. Visto pelos meus olhos, sou o centro do meu universo. Tudo gira em torno do meu gozo, das minhas necessidades, da minha malvadez. Tudo gira em torno de mim.

Talvez seja por isto que estou imune às muitas das maleitas que afligem os vivos… (mas aqui já estou a divagar)

Voltemos ao assunto. Dir-me-ão alguns: Que outra coisa se poderia esperar de um ser diabólico? De uma criatura danada? Claro que uma criatura assim só pode ser egocêntrica.

Para os alguns, não tenho respostas. Tenho, antes, a seguinte reflexão.

Parece-me estranho o significado pejorativo atribuído à palavra egocentrismo. Sobretudo quando considerado o significado da palavra que lhe deu origem: ego. Não encontro, nesta última, nada de negativo. Pelo contrário. Mas deve ser falha deste corpo sem vida …

De acordo com os vivos, é belo ser-se altruísta. Abaixo os monstros egocêntricos, clamam. Mas eu pergunto-me: não será o altruísmo uma manifestação de egocentrismo? E mais: Como se pode amar a outros se não nos amarmos a nós?

(Confissão: Escrever a palavra amar provocou-me convulsões violentas. Foi como se a luz solar me atingisse em cheio. Uma dor indescritível; lancinante.)

Eu sou claramente egocêntrico. É o meu principal traço de personalidade. Disso, não tenho dúvida alguma. Um monstro, claro. No entanto, vejam só o seguinte exemplo do meu comportamento.

Quando procuro novas vítimas, não as escolho ao acaso. Não mordo essas criaturas divinas tirando proveito de um instante de cedência de vontade, de distracção. Não. Eu quero-as em toda a sua pujança; em instantes de manifestação expressa da sua vontade.

Está bem, pronto. Admito que, por vezes, a minha percepção do seu estado de alma possa estar errada. Acontece. Mas quando avancei, pareceu-me que estavam de olhos bem abertos. (É perante a constatação de erros de percepção que o estropício do vivo ganha força)

Porquê, perguntam. Será que, afinal, uma criatura perversa como eu tem uma réstia de bondade no coração? Não, claro que não. Não tenho coração (lembram-se?). E muito menos, essa coisa a que chamam bondade.

A razão é simplesmente esta: o meu ego não o permite. Fazê-lo, seria diminuir-me. A mim, que me sinto enorme (eu sei, a minha estupidez não tem limites).

Que comportamento estranho, não é? Mas mais estranho ainda é pensar em quantos supostos altruístas poderão afirmar o mesmo.

Na verdade, nada disto me aflige. Olho para o tema com distância; com a indiferença de quem está morto. Mas penso nisso. Porque se conota negativamente este traço de personalidade? Não entendo.

Enfim... coisas de vivos.